Paty Wolff (Cuiabá-MT) nas alturas da Literatura Brasileira: finalista do Jabuti 2022
O prêmio Jabuti é um dos mais importantes do Brasil e, todos anos, destaca as melhores produções em diversas categorias como romance, conto, poesia, infantil e outras. Neste ano, a edição também comemora o Centenário da Arte Moderna. No dia 25 de outubro foram anunciados os dez finalistas em cada categoria. Para nossa imensa alegria, Mato Grosso estava na lista com o livro de contos Como Pássaros no céu de Aruanda da cuiabana adotiva Paty Wolff, nascida em Cacoal-RO.
O livro já nasceu premiado como Revelação do Edital Estevão de Mendonça 2019. Neste ano, foi selecionado no edital Minha Biblioteca para compor o acervo das bibliotecas do munícipio de São Paulo. A torcida da comunidade artística mato-grossense é forte para o próximo 8 de novembro, quando teremos o anúncio dos cinco finalistas e, para 24 de novembro, quando teremos o resultado final. É consenso, entretanto, que ter chegado aos dez finalistas num universo de centenas de inscritos na categoria e de mais de quatro mil e duzentos livros concorrentes de todo o Brasil, já é uma consagração para a autora e para a editora Entrelinhas sediada em Cuiabá, Mato Grosso.
Paty é uma artista múltipla. Foi ela quem desenhou e pintou as ilustrações do livro. Não bastasse, é ceramista, atriz, professora, mestre em Geografia e mãe do Léo, atualmente com três anos. Também é autora do belíssimo livro infantojuvenil Thehcitura (Ed. Entrelinhas, 2021).
O livro já começa num tom elevado estética e simbolicamente, com a dedicatória: “Às alturas. Elas merecem todas as asas”. Esse enunciado dialoga profundamente com os pressupostos do movimento condoreiro, desencadeado na literatura brasileira em meados de 1800, quando a escravidão era não apenas uma mancha no nosso passado histórico, mas uma ferida aberta e viva. (O principal expoente do condoreirismo foi o poeta Castro Alves. Condor é uma ave que simboliza a liberdade para os povos andinos). Nos textos de Wolff, as asas de pássaros são imagens significativas. O que se abre, nas páginas seguintes à dedicatória, são vinte e três contos curtos que traduzem, desde a travessia do Oceano Atlântico em navios negreiros, até o cotidiano presente das pessoas negras, os horrores da escravidão e seu principal legado: o racismo estrutural. O livro emociona do início ao fim, pela linguagem verbal e não verbal. Estamos, sim, diante de uma artista gigante que sabe escrever, sabe desenhar e sabe pintar. O projeto gráfico assinado por outra mulher, Maria Teresa Carrión Carracedo, é igualmente primoroso e contribui para os efeitos de sentidos que a obra provoca.
O título do livro remete à Aruanda, cidade espiritual que faz referência à capital de Angola – Luanda. A imagem da capa traz a metade do rosto de um menino, com um olhar triste, porém aberto e atento. Os contos, pelo que sugere o início do livro, são guiados pela memória de Griot, que significa contador ou contadora de histórias, ao pé de uma fogueira.
O fogo que arde no coração de quem conta é simbólico. Em várias culturas, representa a ânsia de transformação. Dentro do coração, segundo magos, xamãs, rabinos e outros, significa a chama sagrada que é uma centelha da própria Divindade em cada um. Como é ambivalente, o fogo também significa, quando fora de controle, destruição. No livro de Wolff, em que as cores do fogo compõem de modo sutil algumas ilustrações e de modo ostensivo outras, percebemos os dois significados: um, negativo, relacionado a tudo o que a escravidão marcou no corpo e na memória de quem a viveu e de seus descendentes; outro, positivo, representado pela centelha dentro cada pessoa que repudia esse acontecimento histórico e seus desdobramentos. Para a população negra e para a maioria dos leitores, creio que o significado mais forte e global da obra seja a ânsia de transformação das consciências e a erradicação do racismo que, de modo inacreditável, ainda acontece num país cuja legislação já o enquadrou como crime.
O que lemos nas 23 histórias são cenas sucintas nas quais quem narra ou apresenta os fatos, indiretamente convida o leitor a preencher as lacunas do texto, com sua sensibilidade, imaginação e criticidade. Assim, desde a captura do continente africano e a vinda à força para este país, passando pelas torturas e crueldades da escravidão, até nossos dias (quando o povo negro ainda está à margem de oportunidades, desempenha trabalhos subalternos e sofre preconceito), as histórias contadas nos envolvem em sentimentos de dor, indignação, espanto e afeto. Há, também, contos-homenagens a mulheres negras importantes como Maria Firmina, considerada a primeira escritora negra brasileira; Carolina Maria de Jesus, a famosa catadora de materiais recicláveis, autora de Diários de uma favelada e Conceição Evaristo, escritora contemporânea.
São fortes, nos contos, trechos e imagens como estas:
minhas costelas pressionando o casco frio do navio; Sinhazinha veio de lá pra cá pisando duro, esbravejou, xingou, humilhou… mandou Fura-Olho passar o esfregão nas costas de Dara.; Em meio à dor, me vieram memórias de quando corria livre pela savana… Passei a mão no capim ocre, que contrastava com o chão batido vermelho, então o céu azul-cerúleo salpicado de branco me abraçou no infinito.; Toda aquela dor contida no alívio daquele homem não estar mais em cima de mim.; Aziza, limpando a caixa de charutos do patrão, começou ali mesmo a parir.; … a boca enterrada numa grande poça de sangue. O carrasco, a mando da sinhazinha, arrancou seus lindos dentes.; por vezes eu me perdia a fitar a toalha gasta da mesa e com um remendinho na beirada, tinha nela desenhado alguns passarinhos prontos a voar; Depois de um dia inteiro de faxinas, a batata da perna chega tremia, para subir a escadaria naquele corpo de cinquenta e nove.; As palavras vinham como um fogo dentro do peito, tinham que sair.; A menina sem demora foi tirando o lanche da sacola, fizeram ali numa felicidade imensa a única refeição daquele dia.; Seu Mestre dizia que por ser uma menina valente, na maioria das vezes o melhor era relevar… Ganhou um livro sobre um povo escravizado que tinha tudo a perder, mas que lutou para não perder sua identidade cultivando sua ancestralidade e fazendo a memória de seu povo prevalecer …”
Por esse catálogo de trechos, fica o convite para a leitura deste livro extraordinário. Mato Grosso já esteve em outras finais do prêmio Jabuti com: Michele Sato, professora da UFMT, em 2006, na categoria científica, pela Editora Artmed-RS; Leila Borges de Lacerda e Nauk de Jesus, na categoria Arquitetura e Urbanismo, Fotografia, Comunicação e Artes, em 2010, pela Entrelinhas-MT; Aline Figueiredo e Humberto Espíndola, na categoria Artes, em 2011 pela Entrelinhas-MT; Maria Auxiliadora de Freitas, na categoria Fotografia em 2012 pela Entrelinhas-MT; Mike Bueno, na categoria “Capa”, em 2015, pela Entrelinhas-MT; Joca Terron, mato-grossense radicado em São Paulo, em 2017, na categoria romance, pela editora Companhia das Letras – SP; Divanize Carbonieri, em 2020, na categoria contos pela Carlini & Caniato-MT. Mas esta é a primeira vez que uma mulher negra consegue tamanha distinção numa categoria literária. E isso nos chama a atenção neste 2022, quando são transcorridos cem anos da Semana da Arte Moderna no Brasil e do movimento modernista, o qual reivindicava, entre outras coisas, uma reinterpretação da realidade brasileira, valorizando a cultura popular e questionando a exclusão do povo negro da literatura.
Torcemos por você Paty Wolf. Que suas histórias inspirem as pessoas negras a afirmarem suas identidades e ancestralidades; e inspirem as pessoas brancas a reconhecerem os crimes do passado e a transformarem suas consciências de modo a elevarmos a humanidade ao tão urgente respeito. Às alturas, Paty Wolf! Você nos orgulha, seu voo só começou. Parabéns!
Marta Cocco[1]
[1] Marta Cocco é professora de Literatura da Universidade do Estado de Mato Grosso na graduação (Tangará da Serra) e pós-graduação (PPGLetras e Profletras-Sinop), Doutora em Letras e Linguística, membro do grupo de pesquisa LER (Unemat/CNPq), escritora e ocupante da cadeira nº 18 da Academia Mato-grossense de Letras.